Vencendo o metajogo: o importante não é competir

Atualizado pela última vez em 04/01/2024

O que é mais importante: vencer ou competir? Nenhum dos dois! O mais importante é jogar e vencer o metajogo. Entenda melhor o conceito nas próximas linhas.

A cultura dominante ensina que o importante não é vencer, o importante é competir. Todavia, isso é dito num tom levemente condescendente e irônico. Na maioria das vezes, soa quase como um consolo ao perdedor. Isso porque no fundo o que se quer dizer é que o fundamental mesmo é vencer, ganhar a qualquer custo porque é isso que distingue um indivíduo. Como dizem, o segundo lugar é o primeiro da lista dos perdedores. Entretanto, como não dá para todo mundo vencer e ser melhor que os outros, cria-se uma cultura de respeito e de tolerância a quem se dedicou mas não conseguiu obter um bom resultado. A ideia de promover o respeito e valorizar cada um dentro do seu potencial é justa e humanitária. Entretanto, ela não está realmente enraizada na cultura e serve em boa parte das ocasiões apenas para aliviar o desconforto reinante diante da frustração da derrota no contexto onde só vencer tem mérito.

A ideia em voga de respeito à diversidade representa, em certa medida, uma tentativa falaciosa de amenizar a tensão causada pelas comparações. A falácia está em confundir propositalmente questões quantitativas com qualitativas. Ser melhor ou pior dentro de uma escala como renda per capita, por exemplo, é uma questão quantitativa. Apreciar uma variedade de expressões musicais de uma região do país é uma questão qualitativa. O respeito à diversidade é bem aplicado para assuntos ou dados exclusivamente de ordem qualitativa. Distorcer o raciocínio para aplicá-lo em situações quantitativas parece uma manobra ideológica com vistas ao poder.

Não se pode negar que a competição gera frutos concretos e tem um alto sucesso empírico, basta ver o desenvolvimento tecnológico promovido por empresas como a Apple. Mas tem seu lado negativo ao ser antropofágica e tornando o bem material mais precioso que o bem humano. Enquanto nossa sociedade continuar promovendo a competição como único meio de evolução e desenvolvimento, permaneceremos com a cultura do “bestismo”, na qual é preciso ser “the best” para ter valor.

Será necessário rever paradigmas e compreender a importância da cooperação de forma mais profunda para que as pessoas incorporem a noção de que podem fazer uma diferença no mundo, ainda que seja como parte de uma equipe ou como executor daquilo que outros estão desenvolvendo. De fato, existe espaço para todos os níveis de proficiência ou capacidade. Mais do que isso, existe a necessidade de que haja quem desempenhe o papel auxiliar, sem que isso seja demeritório.

Na verdade, poucas coisas no mundo atual são realizadas por pessoas isoladas, mesmo que alguns insistam na posição egoísta de requerer somente para si a patente, o direito ou a autoria do que quer que seja. Em realidade, o que acontece é que para acontecer o progresso é necessária a transferência de conhecimentos ao longo das gerações, permitindo seu acúmulo e revisão, com eventuais rupturas que também seriam impossíveis sem ter algo a ser rompido. Esse artigo mesmo não estaria sendo escrito se o autor não tivesse assistido a uma palestra sobre acidente vascular cerebral em que o apresentador referia-se ao conceito de “metagame”. Aliás, é sobre isso que devemos falar aqui.

Mais importante do que competir ou vencer é saber jogar. O jogo aqui referido é o realizado com graciosidade e bom humor na vitória e na derrota. É o que os esportistas costumam chamar de fairplay. Quem luta desesperadamente para vencer, com frequência ultrapassa os limites da cordialidade e de alguma forma agride seus companheiros de equipe ou seus oponentes. Pode ganhar a partida mas perde o metajogo.

O jogo do jogo é o metajogo. É a ideia de que a atividade competitiva faz parte de um contexto maior que envolve o compartilhamento de vivências, a criação de experiências e produz uma narrativa intelectual, emocional e física que fica na história. Quem não sabe se conter, não é chamado para jogar de novo. Perdeu o metajogo porque perdeu a esportiva, passou dos limites, deu mais valor à partida do que à ética que a organiza. Não se pode querer vencer a qualquer custo. Não se pode perder o amigo para não perder a piada. Não se pode difamar seu oponente, criar inverdades ou usar de sofismas para vencer uma argumentação. Não se pode desconsiderar o jogo do jogo.

As pessoas que focam muito na disputa não percebem que todos à sua volta estão olhando e pensando sobre que tipo de jogador é aquele que usa de qualquer artimanha erística para prevalecer sobre os demais. A consequência é que os normais se afastam de quem é excessivamente competitivo porque não é agradável ficar perto de alguém que se coloca acima dos outros, que não sabe reconhecer seus erros, que não sabe perder e que não sabe estimar a honra e o prazer de estar com o outro e dividir momentos de vida que são sempre singulares.

Na tradição hindu de origem shaktista, o mundo é criado pela Deusa que dança e brinca ao redor de Shiva que permanece imóvel. O termo para o ato criativo da Deusa é “lila” que significa jogo ou esporte. Essa metáfora traduz-se pela ideia que a vida deve ser, antes de qualquer coisa, prazer e brincadeira . Para vencer o metajogo é preciso manter a leveza, encarar as coisas como uma brincadeira ou um jogo em que o maior objetivo não é o resultado, mas estar no processo interpessoal de viver com alegria em comunidade. O melhor jogo de todos é aquele em que todos ganham.

Roger Taussig Soares
neurologista SP
crm 69239

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Dr. Roger Soares é médico neurologista, nascido em 1968 no Paraná. Mora em São Paulo há mais de 30 anos e é médico credenciado dos maiores hospitais da capital paulista. Atualmente se dedica exclusivamente ao tratamento de seus pacientes particulares no consultório no Tatuapé. Gosta de escrever, aprender e provocar reflexões. "Conhecimento verdadeiro é saber a extensão da própria ignorância." Confúcio

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