O que fazer quando não há mais nada a fazer

Atualizado pela última vez em 04/01/2024

Trabalhando no cuidado de pessoas doentes nos defrontamos, freqüentemente, com situações em que parece não haver mais nada a fazer. São situações nas quais os recursos da medicina e demais profissões da saúde parecem inúteis e o sofrimento do paciente e seus familiares, insuperáveis. Nesses momentos é preciso reestruturar a própria visão e procurar novas perspectivas que revelem oportunidades de ação.

Para se ter uma ideia da importância dessas situações limites, basta dizer que em agosto de 2011 o Conselho Federal de Medicina reconheceu a medicina paliativa como especialidade médica. A medicina paliativa tem como objetivo prover cuidados àqueles que, à primeira vista, parecem intratáveis.

Candidatos a cuidados paliativos são pessoas que vivem dores crônicas, que têm câncer terminal ou doenças degenerativas. São doentes para os quais não há possibilidade de cirurgia, os medicamentos não são capazes de frear a evolução do problema e a qualidade de vida está seriamente comprometida por questões como imobilismo, incapacidade de se alimentar ou falta de ar constante. Os cuidados paliativos amenizam o sofrimento quando não há perspectivas de cura.

Quando pensamos em cuidados paliativos nos vêm à mente os pacientes terminais, nos estágios finais de doenças. Todavia, especialmente na neurologia, temos muitas outras condições clínicas que não são necessariamente terminais e que representam um desafio de paliação. Imaginemos as pessoas portadoras de distúrbios de base genética que têm uma vida longa pela frente, que deverão aprender a conviver com limitações físicas e mentais importantes e até com a degradação orgânica progressiva. Pensemos naquelas vítimas de acidentes vasculares cerebrais ou de traumatismo craniano que tiveram sua funcionalidade e independência tomadas de assalto por uma lesão abrupta. Lembremos dos pacientes com Alzheimer que viverão, em média, 5 a 10 anos após o diagnóstico e que têm uma série de obstáculos pela frente. É preciso empreender um esforço paliativo desde o início do tratamento, visando o conforto e a qualidade de vida.

Mudando nossa visão

A primeira coisa a fazer é se livrar do pessimismo que existe até mesmo dentro da classe médica. Alguns especialistas acostumados a tratar patologias que permitem intervenções curativas, como um cálculo na vesícula ou uma apendicite, podem imaginar (e imaginam) que certos pacientes não merecem “investimento” porque possuem doenças intratáveis. Na nossa prática, aprendemos que sempre há o que fazer.

A doença vai sempre muito além da patologia orgânica. O sofrimento é consequência do comprometimento físico, emocional, psíquico e espiritual. Portanto, tratar o sofrimento significa intervir positivamente em aspectos que podem ser negligenciados se temos uma visão muito reducionista. O conceito de dor total desenvolvido por Cicely Saunders abarca todas as dimensões do sofrimento e dá suporte a intervenções com base científica. Quer dizer, a visão holística não é algo “new age”, mas sim um valor nas terapias mais modernas.

Como médico, podemos intervir e melhorar a situação geral com algumas mudanças de visão, as quais apresentaremos a seguir.

Primum non nocere

Primeiro não causar dano. Essa é uma máxima da ética médica que parece remontar aos tempos de Hipócrates. Sua formulação em latim seria posterior, mas as bases já estariam presentes no juramento hipocrático.

Significa que não devemos submeter o paciente a um tratamento que poderá lhe causar dano sem levar em conta o risco e o benefício inerentes àquela conduta. Isso pode parecer elementar ou até banal, mas diante da ansiedade da família é comum vermos realizados certos procedimentos que causam mais sofrimento ao doente. Atualmente se considera bastante se um tratamento não é fútil. Um exemplo de tratamento fútil é fazer quimioterapia quando o paciente já está nas últimas semanas de vida. Além de não mudar o prognóstico, ainda acarretará em maior sofrimento nos últimos dias de sua existência.

A obstinação terapêutica é responsável, muitas vezes, por situações de distanásia. Por exemplo, levar um paciente terminal à UTI e colocar sondas, cateteres e ventilação artificial só o afastarão da família e levarão a uma morte sofrida e solitária. Saber o que não fazer é tão importante quanto saber o que fazer.

A morte não é um evento catastrófico e injusto para a existência. A morte é um momento sagrado de conclusão da obra da vida.

Ortotanásia, distanásia e eutanásia

Eutanásia é crime no Brasil

Antecipar o momento natural da morte é proibido no Brasil. Um médico não pode prescrever uma medicação ou realizar um procedimento para abreviar a vida do paciente. Também não pode contribuir para que o próprio paciente o faça, como nos casos de suicídio assistido. Por outro lado, o médico não pode deixar de oferecer um tratamento que aumente a sobrevida dentro de condições de dignidade. A justiça brasileira condena a eutanásia e reconhece a ortotanásia.

Distanásia é o prolongamento do sofrimento da morte

Ao longo do tratamento de uma doença potencialmente curável, como o câncer, utilizam-se muitos recursos tecnológicos. À medida que o tempo passa e a perspectiva de cura desaparece, os recursos terapêuticos deixam de trabalhar para a cura e aumentam, artificialmente a vida do paciente. Para a família é muito difícil saber o momento de parar. Com frequência, alimentam a esperança de uma virada milagrosa e querem “lutar até o último suspiro”.

Contudo, alguns tratamentos conseguem apenas prolongar o sofrimento da morte e retiram do paciente a dignidade no final da vida. Mais importante do que manter o coração batendo numa UTI é permitir o que paciente tenha momentos de felicidade e se sinta acolhido pela família até o fim.

Ortotanásia: a morte com dignidade

Quando estamos diante de um paciente que caminha inevitavelmente para a morte, é nosso dever prestar assistência nesse processo. Podemos tornar a morte o ato final da existência, dando poder ao paciente para tomar decisões antecipadas. Devemos minimizar o desconforto utilizando recursos médicos, psicológicos e de apoio espiritual para o paciente e sua família. Podemos criar um ambiente de calma, apoio e conforto garantindo a intimidade desse momento.

A morte não é um evento catastrófico e injusto para a existência. A morte é um momento sagrado de conclusão da obra da vida.

A doença e o doente

Na busca da perfeição, a medicina se esforça em pesquisas que procuram tratamentos definitivos para as doenças. É certo que os avanços têm sido fantásticos. Vivemos mais e melhor  a cada década. Lembro dos pacientes de esclerose múltipla, cujos tratamentos avançaram tanto que hoje conseguimos passar esperanças diante do diagnóstico.

Entretanto, o otimismo proporcionado pelo desenvolvimento da genética, da biologia molecular, da imunologia e da nanotecnologia que permitem o desenvolvimento de fármacos altamente específicos e rigorosamente desenhado traz consigo um efeito colateral sério. É a frustração e a sensação de impotência quando esses medicamentos não funcionam em um paciente ou param de funcionar ao longo do tempo. A sensação é de impotência, de incapacidade e de que, diante disso, não há mais nada a fazer.

Para o médico que procura nutrir a compaixão pelo outro, esse não é o momento final. Muitas vezes é o momento de início porque já não nos importamos tanto com a doença e nos ligamos mais ao doente. Importa olhar a pessoa que está vivenciando a situações e encontrar os meios que aliviem as conseqüências da doença principal. Quando mudamos o óculos e enxergamos a situação de modo diferente é como se uma porta se abrisse para uma outra dimensão cheia de possibilidades e de chances para agir.

Um relato de caso

Tenho uma paciente com retardo mental e uma epilepsia de difícil controle. Quando veio ao meu consultório pela primeira vez, juntos com os pais já maduros, olhei a paciente e quis melhorar ao máximo os medicamentos para o controle da epilepsia e com os ajustes certos, conseguimos diminuir em cerca de 50% a freqüência das crises. Porém atingimos o limite do tratamento e foi então que conseguimos ver talvez a parte mais importante do problema.

Apesar das crises epilépticas freqüentes e da incapacidade intelectual daquela mulher de mais de 30 anos, o que incomodava seus pais era especialmente a questão do comportamento da nossa paciente. Ela não conseguia dormir sozinha, tinha acessos de agressividade, flutuações importantes do humor e outros problemas que causavam impedimentos sociais graves. Os vizinhos já sabiam quando que certas noites eram noites de lua…

Com uma nova missão em vista, escolhemos novos medicamentos que controlaram o comportamento e atualmente até permitem um passeio ao litoral de vez em quando. As crises epilépticas ainda ocorrem com certa freqüência, mas a vida está muito melhor.

A psicologia da satisfação

Deixamos de causar danos, aliviamos as perturbações associadas ou decorrentes do problema principal, tratamos da melhor forma possível a doença de base e ainda assim há coisas por fazer. Podemos ainda redimensionar o sofrimento do paciente e da família.

Existe certamente uma relação entre dor e sofrimento. Quanto maior a dor, maior o sofrimento. Porém a proporcionalidade entre os dois não é fixa. Existem pessoas que se entregam a um resfriado e passam dias na cama se sentindo miseráveis e há aquelas que convivem há décadas com dores diárias e que estão na luta, felizes e atuantes.

É engraçado até como os homens são muitas vezes mais vulneráveis que as mulheres. Ficam mais infantilizados quando doentes e precisam de atenção e carinho, e nossas parceiras nos olham com amor e cuidam de nossos males menores esquecendo suas próprias dores. É o instinto materno falando alto e nossa condição de filhos eternos reacesa. Smile

Trazendo para a prática clínica, percebo que alguns pacientes sofrem em excesso com suas doenças, entre outras coisas, pela falta de percepção do que esperar de seu tratamento. Aprendi com um professor americano que a satisfação é uma razão entre a realidade e a expectativa de acordo com a fórmula abaixo.

Pelo que vemos, quando a realidade supera nossas expectativas ficamos felizes e satisfeitos. Quanto melhor a realidade, maior a satisfação. A relação é diretamente proporcional. Quanto maior a expectativa em relação à realidade, menor a satisfação. A relação aqui é inversamente proporcional. Vejamos um caso para ilustrar a importância desse fato.

Atendi uma paciente com dores de cabeça diárias há mais de 6 meses. Suas dores comprometiam a qualidade de seu trabalho e minavam suas relações familiares e pessoais. Com o tratamento, conseguimos diminuir a freqüência, a intensidade e a duração das crises em mais de 75%. Por alguns meses, a paciente ficou muito bem e feliz mas depois disso passou a reclamar das crises que tinha a cada 15 dias.

Expliquei que o tratamento estava sendo bem sucedido, que houve uma melhora significativa da qualidade de vida e que se considera satisfatório um tratamento que diminua os sintomas em mais de ¾. Também passei um esquema de 3 estágios para tratamento de crises eventuais e observamos que com esse esquema seria possível tratar as dores em casa, sem precisar passar até 24 horas no pronto-socorro como fazia. Além disso, alertei que os melhores tratamentos atualmente disponíveis não são capazes de resolver todas as crises de enxaqueca. Por fim, adverti que tomar doses mais altas de medicamentos aumentaria a chance de efeitos colaterais.

O resultado é que a paciente passou a ficar mais tranquila com seu problema, começou a investir em hábitos de vida mais saudáveis e teve períodos em que até se esquecia que tinha uma doença incurável. Ajustando as expectativas e apontando os fatos positivos da realidade, a satisfação geral aumentou bastante. Focando em aumentar sua saúde, até as dores diminuíram ainda mais.

O lado espiritual

Falamos das coisas que podemos fazer quando não há mais nada a fazer. Vimos que sempre há o que fazer e que podemos melhorar a qualidade de vida, aliviar o sofrimento, não causar danos e orientar quanto à realidade e a expectativa que se traduzem em satisfação. Tudo isso pode ser feito de maneira metódica e científica, mas podemos ainda dar um toque final lembrando do aspecto espiritual.

Não se trata de religiosidade, mas de espiritualidade como sentimento legítimo de interesse pelo ser humano à sua frente. A espiritualidade não se configura como recurso último de resignação ao que é inexorável, mas serve referencial e sustentação nos momentos difíceis. Desde que tenhamos a motivação correta, o desejo real de servir e o olhar compassivo, seremos sempre capazes de encontrar criativamente o que fazer para ajudar aqueles que se tornam parte da nossa vida e da nossa história como médicos e seres humanos.

Quando tudo parece sem solução, o pouco que conseguimos dar significa muito para quem recebe.

Roger Taussig Soares
Neurologista – São Paulo
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Dr. Roger Soares é médico neurologista, nascido em 1968 no Paraná. Mora em São Paulo há mais de 30 anos e é médico credenciado dos maiores hospitais da capital paulista. Atualmente se dedica exclusivamente ao tratamento de seus pacientes particulares no consultório no Tatuapé. Gosta de escrever, aprender e provocar reflexões. "Conhecimento verdadeiro é saber a extensão da própria ignorância." Confúcio

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