Agressividade e suas manifestações entre jovens

Atualizado pela última vez em 04/01/2024

Estava conversando com um garoto de 15 anos, pertencente à classe média e frequentador de uma boa escola particular em São Paulo. Ele me contava de uma “brincadeira” que seu grupo de amigos faz periodicamente. Chama-se “brigar sem perder a amizade” e consiste em rounds de luta de rua (street fight, como meu orgulhoso interlocutor enunciou) em que os adolescentes se atingem com socos, pontapés, chaves de braço, imobilizações e outros golpes, incluindo o famigerado “murro na cara”. Os limites são apenas 2: em caso de sangramento a luta é interrompida e ninguém pode perder a amizade.

Evidentemente, em muitas ocasiões o ringue improvisado ora na casa de um, ora na casa de outro (longe dos pais), fica marcado com respingos de sangue, pedaços de dentes quebrados, algumas lágrimas e o eco das gargalhadas de humilhação coletiva lançadas aos perdedores(o golpe de misericórida sobre quem já levou bastante).

Nessa brincadeira “inocente” valem muito os atos de submissão desonrosa, como imobilizar o oponente e dar tapinhas no rosto, temperando com um toque de sadismo o processo inteiro. Só não é permitido atingir as partes baixas, se bem que exista uma certa condescendência para quem lança mão dessa tática se estiver apanhando muito.

Depois de tentar esconder meu horror, afinal sou ainda do tempo em que “não se bate na cara de um homem”, procurei orientar o rapaz sem parecer muito quadrado. Uma atitude mais intempestiva poderia me valer a pecha de careta, isso nos termos apropriados à minha geração.
Ficou, entretanto, a reflexão sobre os motivos desse tipo de comportamento.

Lançando mão dos conhecimentos de biologia, pensei ter encontrado na raiz animal do ser humano a causa do “clube da luta” , versão brasileira. Especialmente para os mamíferos predadores, são comuns as brincadeiras de lutas entre adolescentes como forma de treinamento lúdico para a vida real que os aguarda. Também lembrando das matilhas e alcatéias, a eleição dos machos alfa acontece nas demonstrações de força. A preservação desse status social depende de resistir aos constantes desafios dos machos beta, hoje curiosamente em moda entre os humanos por serem mais sensíveis e carinhosos.

Por outro lado, escapando da explicação biológica, imagino se não estamos em um ponto da sociedade no qual o descrédito em relação à racionalidade (herdada como ideal humano máximo das épocas iluministas), como forma de resolução de conflitos tenha chegado a um nível em que alguns homens passam a se sentirem mais homens exatamente quando são mais animais.

Outras formas de primitivismo socialmente permitido poderiam ser os esportes cada vez mais de contato físico, inclusive entre as torcidas. Há quem diga que as olimpíadas foram criadas para substituir as lutas sangrentas e as guerras. Todavia, atualmente a pressão da panela parece estar aumentando e se não contamos com a razão para diminuir o fogo que a alimenta, resta-nos soltar a válvula de escape constituída pelo atavismo irracional.

Pensando agora sob a perspectiva cultural, vivemos uma época de crise de identidade na qual a sensação de pertencimento a uma comunidade se dissolve no mar de homogeneidade da modernidade líquida, conforme Zygmunt Baumann. Diante da relativização de valores e da insustentabilidade ética, é preciso ter algo forte, capaz de impor algum relevo sobre um terreno que parece por demais igual, apesar de tanta diversidade.

A construção desse ponto de significação densa, marco de orientação e eixo em volta do qual gira o mundo simbólico da identidade, pode ser a adesão a uma religião, como bem explica Mircea Eliade (em O Sagrado e o Profano), e ainda a constituição de grupos com regras muito próprias e rígidas, por mais que corrompidas na questão moral.

São elucubrações para tentar encontrar razões onde, talvez, elas não exista. Quem sabe esses fenômenos desafiem a lógica justamente pela necessidade de desafiá-la, como forma de rebeldia para assegurar uma diferença no mundo. Daí por meio dessa revolta se constituem as comunidades dos discordantes.

O fato é que o ideal do belo, da harmonia e da realização do ser parece cada vez mais distante e utópico. Muito poucos contemplam a possibilidade da transcendência e a espiritualidade virou piada. Não é à toa que o modelo de desenvolvimento econômico global cede ao capitalismo selvagem e nos lança na crise mundial que enfrentamos a cada dia.

Roger Taussig Soares
Neurologisa SP
crm 69239

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roger.soares
Dr. Roger Soares é médico neurologista, nascido em 1968 no Paraná. Mora em São Paulo há mais de 30 anos e é médico credenciado dos maiores hospitais da capital paulista. Atualmente se dedica exclusivamente ao tratamento de seus pacientes particulares no consultório no Tatuapé. Gosta de escrever, aprender e provocar reflexões. "Conhecimento verdadeiro é saber a extensão da própria ignorância." Confúcio

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